Com objetivo de conhecer os arquitetos, os projetos e as histórias por trás da arquitetura portuguesa de referência, Sara Nunes, da produtora de filmes de arquitetura Building Pictures, lançou o podcast No País dos Arquitectos, em que conversa com importantes nomes da arquitetura portuguesa contemporânea.
No episódio desta semana, Sara conversa com o arquiteto Camilo Rebelo, sobre o projeto para o Museu de Arte e Arqueologia do Vale do Côa. Reveja as outras entrevistas realizadas pelo podcast No Pais dos Arquitectos e leia a transcrição da entrevista com Saraiva, a seguir.
Reveja, também, as entrevistas já publicadas do podcast No País dos Arquitectos:
- Carrilho da Graça
- João Mendes Ribeiro
- Inês Lobo
- Carlos Castanheira
- Tiago Saraiva
- Nuno Valentim
- Nuno Brandão Costa
- Cristina Veríssimo e Diogo Burnay
- Ricardo Bak Gordon
- Paula Santos
- Carvalho Araújo
- Guilherme Machado Vaz
- Menos é Mais Arquitectos
- depA architects
- ARX Portugal
- Frederico Valsassina
- PROMONTORIO
Sara Nunes - Bem-vindo arquitecto!
Camilo Rebelo - Muito bom dia! Muito obrigado, Sara, pelo convite. É uma honra e é um prazer poder contribuir para este seu projecto! Tenho toda a disponibilidade. Estou aqui disponível para as perguntas e para tudo o que quiser saber acerca do tema.
SN - O arquitecto Camilo tem desenvolvido arquitectura com uma relação muito forte com a natureza e com a paisagem. O projecto sobre o qual vamos falar hoje não é excepção. Sei que se tem dedicado a investigar – quer sozinho, quer em parceria, com outros arquitectos e em equipas de engenheiros – sobre o tema. No país em que os arquitectos têm evitado falar, a sério, sobre a sustentabilidade, o que tem pensado o arquitecto Camilo sobre a sustentabilidade? E de que forma é que a arquitectura pode deixar de ser um problema para o planeta e passar a ser uma solução?
CR - Isso são muitas perguntas numa pergunta só!
SN - São muitas perguntas, é verdade! (risos) Fui muito ambiciosa!
CR - O tema da sustentabilidade ou o tema da eficácia energética são temas absolutamente fundamentais. Eu diria que é a partir daí que agora tudo tem de começar a ser pensado. Com certeza existe uma narrativa, que é sempre a narrativa da arquitectura. Insisto em dizer isto porque há uma tendência das novas gerações – e quando falo das novas gerações refiro-me à faixa etária que está abaixo dos 45/50 anos de idade; estamos a falar dos arquitectos mais jovens, que ainda não entraram na fase completamente sénior – construírem narrativas paralelas ou narrativas secundárias, que passam a ser as narrativas principais. Isso é algo que eu penso que vem muito da natureza da comunicação actual, que é uma natureza feita com muitas imagens, muitos renders e muitas virtualidades. Trata-se de uma comunicação muito sedutora que não deixa de ser uma realidade virtual. Penso que essas narrativas secundárias têm, aos poucos, tomado o lugar da narrativa da arquitectura. Em primeiro lugar tem de haver a narrativa da arquitectura, mas eu diria que, a montante, tem de existir um tema que é o tema da sustentabilidade, da eficácia energética e da ecologia. Quando se pensa a arquitectura podemos pensar e construir a arquitectura de muitos modos. E essa construção tem de ser uma construção muito aware, muito atenta e muito desperta. Nós somos consumidores, nós somos construtores e, portanto, nesse sentido temos de saber, exactamente, todo o processo. Ou seja, temos de saber como é que se começa, onde é que se começa, que extracção é que estamos a fazer, até onde é que vamos e, por fim, como é que vamos até a conclusão e a construção da mesma, tendo sempre em conta o quanto é que isso polui. Este tema tem de estar sempre presente. Nós não podemos trabalhar dissociados disso. Agora o que é que faz a diferença? Faz obra a obra. Ou seja, obra a obra temos de descobrir exactamente quais são as condições. Só para tentar fechar esta primeira pergunta, posso dizer que vou-me reunindo com as minhas equipas de engenheiros, aqui e ali, e quando temos uma vaga conversámos. No meio dessas reuniões, percebemos que um dos maiores factores de sustentabilidade é a matéria-prima estar perto da obra.
SN - Construir no local.
CR - Sim, construir com o local e no local. Isso é uma coisa muito interessante. Efectivamente, se nós estamos a construir com uma matéria que tem de se deslocar através de um camião, de um vagão, de um barco até chegar ao seu destino e que depois ainda tem de voltar para outro camião, sair desse camião para ir para outro território onde vai ser construída – estamos a falar de um processo de transporte longo, caro e altamente poluente. Portanto, automaticamente, esse factor – quando se usa o que é do lugar, o que é local, o que é daquele contexto – é logo um factor de não poluição extremo. Podemos começar a falar de outros factores, mas este é evidente. É um factor que é muito fácil de quantificar.
SN - Penso que é muito interessante estar a falar sobre isso porque o nosso patrocinador é a Filstone. Eles têm uma pedreira e uma das preocupações que me transmitiram foi o facto de Portugal não utilizar a sua matéria-prima e os seus maiores clientes são a China. Mais uma vez existe esta questão das viagens nos pesar muito. Nós temos aqui material que não estamos a utilizar e do outro lado do mundo estão a solicitar a nossa matéria-prima. O projecto sobre o qual vamos falar hoje situa-se numa paisagem duplamente classificada – a classificação do Alto Douro Vinhateiro e o Vale do Paleolítico – e sei que foi na paisagem que encontraram as soluções para o projecto. Fale-nos sobre isso. Quando digo que encontram soluções é porque sei que este projecto também foi feito em parceria com o arquitecto Tiago Pimentel.
CR - O Tiago Pimentel foi meu parceiro. Somos sócios neste projecto, juntamente com o engenheiro Jorge Nunes da Silva. O consórcio era de três partes e eu digo isto porque, com certeza, que a parceria em arquitectura é uma mais-valia. Trabalhar a dois é muito interessante, mas trabalhar a três com um parceiro que é engenheiro é fundamental quando se está a fazer uma obra daquela dimensão, daquela escala e se quer atingir determinados objectivos. Portanto o consórcio é um consórcio a três que dá solidez ao projecto e confere-lhe uma complexificação, desde o início, absolutamente única. Isso é um tema muito importante.
SN - É interessante porque vejo que, em todos os seus projectos, gosta que a equipa de engenharia também se envolva para que todos juntos encontrem a melhor solução possível.
CR - Quanto maiores forem as equipas e quanto mais ouvintes formos, melhor. Ou seja não me adianta ter uma equipa de 30 pessoas se eu não sei ouvir. Eu gosto de ouvir e gosto que as pessoas tragam o seu conhecimento, o seu contributo, a sua intuição e a sua opinião. Há muitos níveis de trabalhar em equipa. Há pessoas que trazem a componente técnica, há pessoas que trazem uma vibe, uma intenção, uma intuição. Há pessoas que trazem só um sentimento, uma emoção, mas quando se trabalha em equipa todos, em certo sentido, dão um contributo. Eu gosto muito disso e penso que isso tem acontecido nos nossos trabalhos, ao longo do tempo, em quase todos os projectos. Passando para o Museu do Côa, posso dizer que ontem dei uma conferência numa universidade, em Portugal, e a certa altura, quando chegou o momento das perguntas e respostas, um aluno colocou-me esta questão: “Depois de falar do tema da narrativa arquitectónica, diga-me numa frase como é que se constrói a narrativa arquitectónica do Museu do Côa?”. Eu disse: “Essa é uma pergunta muito interessante. A narrativa arquitectónica do Museu do Côa constrói-se da maneira mais linear que existe. Aliás, quase mesmo no sentido linear porque trata-se de uma linha, é um terraço”. Se eu tivesse de definir numa frase o que é o Museu do Côa, eu diria: “O Côa é um terraço que vê a paisagem – porque é a paisagem que é classificada – e faz dessa mesma paisagem a estrutura e a composição do próprio terraço”.
Ou seja, quando estamos no terraço, por baixo temos o conteúdo da paisagem e, à frente, no horizonte temos a paisagem propriamente dita. Nós temos os pés em cima do conteúdo da paisagem e isto é a narrativa arquitectónica. Não há mais que isto. Trata-se de um monólito em que o monólito é a síntese do conteúdo da paisagem e em cima do monólito vemos essa mesma paisagem. Esta é a narrativa arquitectónica. A partir daqui, podemos continuar e revelar as nossas decisões, explicando que, como não queríamos uma porta, fizemos uma fenda (um crack, um rasgo). Também podemos dizer que por baixo desta grande pedra há uma sombra e, por sua vez, debaixo dessa sombra existe um buraco. Esse buraco é o abrigo que nos recebe, por baixo do calor.
SN - Já agora que fala nesse buraco, não resisto a pedir para contar a história do lagarto.
CR - A história do lagarto tem graça. Eu acho imensa graça e o Tiago também fala nessa história recorrentemente. Então isto passou-se desta forma: nós fizemos muitas visitas de campo – o Tiago, eu e também o Jorge Silva acompanhámos os arqueológos em visitas de campo, vimos várias vezes as gravuras e quisemos observar os diversos sectores. As gravuras do Museu do Côa estendem-se a 30 km nas margens dos rios Douro e Côa. Há muitos lugares e muitos lugares muito bonitos porque são de uma beleza dramática com aquelas escarpas em xisto a verterem sobre o rio. Há também os códigos do Paleolítico (que eu falarei depois). Efectivamente, num dia, numa dessas visitas, eu sentei-me num pedregulho gigante. Havia também um grupo de pessoas com arqueólogos e alguns visitantes e eu estava muito descontraído em cima da pedra a ouvir a apresentação. De repente, ficou tudo a olhar para mim, estarrecido, e eu não estava a perceber porquê. Depois compreendi que era porque estava a sair debaixo de mim, literalmente, um lagarto que tinha cerca de um metro e meio de comprimento. Era um bicho que parecia quase um familiar de um dinossauro. (risos)
SN - (risos)
CR - Eu fiquei completamente frozen e eles riram-se. Quer dizer, primeiro ficaram nervosos, mas depois entrou tudo num espasmo de gargalhada. Ficou-nos sempre essa lembrança porque os bichos saem debaixo das pedras e, no calor extremo do Vale do Côa, o que há mais, debaixo das pedras, são bichos. Funciona como o lugar de abrigo, a toca, o lugar da protecção, por isso – quando começámos a compor o tal terraço, essa tal pedra na montanha –, desde o início, quisemos que debaixo fosse o lugar do abrigo. Ou seja, o lugar onde as pessoas têm o auditório, o restaurante, a cafetaria, o espaço comum, mas ao mesmo tempo existe a grande sombra e é a sombra que nos protege. Num certo sentido funciona como algo que nos dá abrigo como o nosso animal ou de modo a que o animal que temos dentro de nós se sinta animal.
SN - Eu ouvi falar sobre este edifício a primeira vez numa conferência - já não me lembro se o Camilo também estava acompanhado pelo Tiago –, na Casa da Música. Lembro-me de ter ficado fascinada pelo processo criativo. Sei que tiveram uma solução para o processo construtivo, que passou por várias fases – pela deslocação das pedras que levaram para o atelier, pela busca da cor e pela decalcação das pedras. Pode-nos falar um pouco sobre este processo?
CR - Posso, sim. Eu penso que todas as obras deveriam ter processos ricos porque se não, não aprendemos com as obras. Se a obra for uma espécie de uma sistematização constante, já sabemos a receita. E se já sabemos a receita não estamos a produzir, nem a aprender nada de novo. Isso parece-me pouco interessante como arquitecto.
Regressando para o outro assunto, o tema do Museu do Côa era a pedra. A nossa primeira intenção foi construir um museu com pedra. Foi com grande desânimo que os nossos engenheiros nos foram dizendo que o xisto não era um material tecnicamente válido. Ou seja é um material que, mecanicamente, não responde aos esforços do betão armado porque na base do xisto está o pó. Portanto o xisto vai-se partindo todo até ficar quase em pó, uma espécie de canela em pó, algo semelhante a essa cor e a essa espessura. E nesse contexto o tema da pedra começou a entrar em risco. Nós queríamos construir um grande monólito na paisagem, um megálito. Ou seja, algo que tornasse a pedra num ícone, atribuindo-lhe um novo significado com um significado habitável. Neste caso, não com o código da caça ou com o código da fertilidade como o Homem do Paleolítico, mas com os códigos da arquitectura com portas, janelas, salas, espaços e luz. Fomos forçados, desde o primeiro e o segundo mês de trabalho, a olhar para as pedras numa outra perspectiva e foi muito interessante porque não só usámos o conhecimento da engenharia (com as escavações, as pedreiras e as extracções) e os laboratórios como o da Secil (que nos ajudou muito), mas também contámos com a experiência dos arqueólogos. Ou seja fomos percebendo como é que cada um olhava a pedra e fomos percebendo como é que poderíamos usar a pedra. Como é evidente, tínhamos de extrair qualquer coisa que não fosse a pedra propriamente dita porque ela não era mecanicamente viável. Então começámos a descobrir a importância da textura, que é um detalhe a que os arqueólogos dão imensa importância. Havia ainda a importância da cor porque era um desafio para a engenharia, para o engenheiro Jorge Nunes da Silva, para o Gop (Gabinete De Organização e Projectos, Lda) e também para a Secil. Andámos à procura do que é que cada um nos podia ajudar a encontrar dentro das suas inquietudes. E uma das histórias interessantes é esta: certo dia, fomos para o Vale do Côa, abrimos a mala do carro e fomos escolher pedras. Andámos aleatoriamente à procura de pedras. É muito interessante porque trouxemos uma mala cheia de pedras, que foram para o laboratório da Secil para serem testadas e copiadas. Temos amostras em betão que são exactamente iguais às pedras.
SN - Caramba!
CR - Descobrimos que tínhamos uma pedra num azul acinzentado (que era a mais escura) e tínhamos uma pedra muito clara com tons semelhantes aos do café com leite (mas com muito leite). Esse contraste total fez com que nós tentássemos afinar um tom intermédio, pois se fosse muito escuro, destacar-se-ia muito no Verão e se fosse com um tom demasiado claro, pareceria um pintainho no meio da paisagem. Ele teve de encontrar ali uma cor quase camaleónica que permita ter uma integração ao longo dos 12 meses do ano. Esse tema foi muito importante para nós, por isso existiram todas essas experiências que fomos fazendo em laboratório e com antecipação. Depois aconteceu outra coisa interessante. A certa altura, já com a obra em construção, pedimos para nos fazerem experiências e então combinámos com a empresa construtora que se mostrou logo muito disponível para fazer as experiências no próprio museu.
SN - Mesmo in loco!
CR - Sim. Se for à cave hoje, há várias paredes da cave que têm as texturas e as cores diferentes que viríamos a usar mais tarde.
SN - Que giro!
CR - Isto porquê? Porque há uma coisa que é muito interessante. É que quando se trabalha com cimento e com temperaturas elevadas há um tipo de processo mais acelerado. Quando as temperaturas descem, os materiais comportam-se de outra maneira. Portanto como nós tínhamos quase 50 ºC no Verão e graus negativos no Inverno, existiam comportamentos distintos. Tendo isso em conta, fomos logo testando para perceber que tipo de comportamento nos dava a temperatura e a circunstância do lugar para obtermos os resultados que queríamos uniformes e com a tal cor quase camaleónica.
SN - O edifício foi concluído e inaugurado há cerca de 11 anos, mas há pouco, em conversa, referia que só agora é que algumas coisas foram concluídas. Entretanto o edifício já esteve dois ou três anos sem funcionar no seu melhor. Pode-nos falar sobre esse processo que foi acontecendo ao longo desta década?
CR - Sara, eu não sei se é comum as obras não ficarem terminadas. Sei que só me aconteceu uma vez até agora, felizmente. E a verdade é que quando ficou inaugurado não cumpria aquilo que estava no projecto de execução, nem no caderno de encargos. E isto por diversas razões. Por um lado por causa da aparente pressa da inauguração e, por outro, talvez por causa de uma atenção menor em relação ao rigor que os arquitectos queriam e a equipa projectista queria. Não sei. Provavelmente houve vários factores, mas sei que não foram terminadas partes do museu e dos seus acessos. Houve uma vontade recente (estamos a falar de há quatro anos) com a presidência de Bruno Navarro. Infelizmente faleceu no ano passado de morte súbita, mas foi ele que quis ver a obra terminada. Certo dia, disse-me: “Para mim é impensável ser director de um museu e saber que tenho um caderno de uma obra por terminar”. Nós ficámos muito contentes. Isso pareceu-nos muito interessante no sentido de querermos ver a obra executada conforme ela foi pensada.
SN - Claro!
CR - Foi uma vontade dele e uma vontade que se concretizou. Mesmo após o seu falecimento, estes trabalhos continuam a ser realizados e estão praticamente concluídos com a nova directora. Foi uma obra que teve este sobressalto a caminho da conclusão e que nos deixou desânimo num certo sentido, mas na verdade penso que o museu está a ter uma second life. Uma vez o Siza Vieira disse: “Atenção! Há obras que podem ter uma second life. Já me aconteceu isso!”. Às vezes, no tempo, não são logo bem aceites ou causam um impacto estranho, mas depois a partir de uma certa altura gera-se uma nova vida. Penso que o Museu do Côa tem isso. O museu inaugurou, foi aclamado nalguns sectores e noutros não. Por exemplo, em Portugal surpreendentemente foi muito pouco aclamado e lá fora não. Foi publicado em várias partes do mundo.
SN - A sério?!
CR - Sim, sim.
SN - Sentiu essa diferença entre a receptividade de Portugal e a receptividade lá fora?
CR - Senti com alguma tristeza. O Museu do Côa é um projecto que nunca foi, por exemplo, para a Bienal de Veneza que eu penso que é uma coisa surpreendente.
SN - Sim!
CR - E, por outro lado, ao mesmo tempo recebeu o prémio Bauwelt, na Alemanha, em Munique.
SN - Pois.
CR - Há qualquer coisa que não faz muito sentido. Da mesma maneira que o Museu do Côa nunca foi nomeado para o prémio Mies van der Rohe, que também é uma coisa absolutamente impensável penso eu. Não estamos a falar da possibilidade de ser finalista e de ser distinguido. Estamos a falar de um Comité Português que eu penso que tinha obrigação de o nomear e não o quis nomear. É difícil passar ao lado de um edifício que tem 200 metros de comprimento, 70 de frente e com aquele impacto todo.
SN - Sim, o impacto que teve na paisagem e mesmo ao nível da experimentação!
CR - Penso que é difícil fazermos de conta e fingirmos que ele nunca existiu, mas alguém fez de conta. Eu penso que isso hoje está na mente dos curadores ou dos críticos. Não faço a menor ideia quem são as pessoas actualmente responsáveis, mas tenho a certeza que as pessoas hoje olham para o Côa de outra forma que não olharam na época. Nesse sentido tenho alguma pena. Mas hoje (contrariamente ao que sucedeu no passado), sinto o respeito dos pares, sinto admiração, curiosidade e interesse. O Museu do Côa voltou a ser muito publicado e voltou a estar em exposições. Esteve, inclusive, numa exposição do CCB. Voltaram a pegar nele para documentários e foi filmado outra vez por várias cadeias de televisão. Penso que voltou de repente – assim quase dez anos depois (e isto antes da pandemia de covid-19) – a ganhar uma dimensão que também (não é por acaso) vem na sequência das obras terem terminado e de haver uma direcção que o queria colocar novamente no mapa. O Museu do Côa faz parte das gravuras e do Parque Arqueológico do Vale do Côa e penso que os dois ganham. Como ele é a síntese física do território automaticamente eu penso que o território ganha com ele e ele ganha com o território. Aliás ele não existiria se não houvesse o território.
SN - Por acaso, agora a título de curiosidade, antes de fazer o Museu do Côa já tinha visitado estas gravuras?
CR - Não. Nós fomos visitá-las no âmbito do museu. Quando decidimos fazer o museu – dois ou três meses antes de começarmos a fazer o projecto, penso que aquilo saiu em Novembro ou em Outubro. Nós só começámos mais ou menos a trabalhar no concurso em Dezembro – decidimos logo que iríamos fazer a visita antes de entregar o concurso. Ou seja para nós era impensável fazer o concurso, fazer uma proposta e não ver o lugar. Foi nesse âmbito que fomos ver o território e as gravuras pela primeira vez.
SN - O que é que lhe ensinou o Museu do Côa sobre a arquitectura?
CR - O Museu do Côa ensinou-me imensa coisa sobre a arquitectura. Essencialmente ensinou-me que um processo para ficar bem tem de ser um processo com complexificação. Ou seja tem de haver complexidade. Se não houver complexidade, a arquitectura não entra para a história. Nós sempre quisemos – foi uma vontade nossa (como arquitectos) – que o Museu do Côa fizesse parte da história. Essa vontade o museu materializou. Hoje tenho a certeza absoluta disso. O museu precisa de complexificação para poder entrar na história e essa complexificação vem do processo.
O processo foi de tal maneira rico que poderíamos estar a falar sobre isto meia hora, uma hora, um dia, uma semana, ou até um mês. São tantas as histórias do processo e isso é que faz também o salto do arquitecto. Não só o salto como indivíduo, mas o salto como arquitecto. Se não é tudo fast food. Não há processo.
SN - O Camilo é professor e já deu aulas em várias geografias (em Milão, em Shanghai, em Mendrisio). O que é que quer ensinar às novas gerações de arquitectos?
CR - Isso é uma questão muito interessante e também ontem estivemos a falar dela lá na conferência. Um dos aspectos que eu penso que é muito importante para os alunos é descobrirem a sua identidade. E penso que a descoberta da identidade tem muito a ver com duas realidades. Tem a ver com o eu propriamente dito e aí a pessoa tem de saber quem é. Isso é muito difícil porque nós vivemos com o eu todos os dias. Portanto olhar o eu de fora não é fácil. Ou seja, responder à pergunta ‘Quem somos?’ não é fácil. E depois ao mesmo tempo, existe o outro lado da construção da identidade que passa pela parte propositiva de tentarmos saber qual é o nosso caminho. Aí temos de responder às questões: ‘Quem somos e para onde vamos? Qual é o objectivo que queremos atingir?’. Para além disso, existem muitos objectivos. Existem objectivos de natureza da quantidade e objectivos de natureza da qualidade. Há objectivos de natureza efémera e os de natureza permanente e duradoura. Portanto essa realidade, essa construção do caminho ou do objectivo é uma coisa muito importante na construção da identidade. Se eu quero tornar-me um repetidor, eu descubro a receita e repito. Não vou para aqui citar arquitectos, mas há arquitectos que escolhem esse caminho e eu estou bem com isso. Fico contente. Se é esse o caminho que o arquitecto A ou B escolheu, eu penso que ele está bem. É a sua escolha. Não é a escolha que eu quero fazer para mim, mas quando falo com os alunos digo-lhes: “Podem escolher. Podem escolher descobrir uma determinada identidade e essa identidade depois é uma identidade com base na repetição, ou podem escolher um caminho – que não digo que é mais difícil ou mais fácil, mas que é criado em torno de uma identidade mais livre e mais solta – de uma identidade que segue mais inquieta e que vai descobrindo, à medida que avança”. E esse é o lado que me interessa. Identidade, para mim, é um tema que os alunos não podem deixar fugir. Têm de fazer este trabalho e este trabalho começa cedo. O outro tema que eu penso que é fundamental (e que não pode deixar de existir em cima da discussão pedagógica) é o clima, a eficácia energética, a biologia e a ecologia. Esse é um tema absolutamente vital. Não se pode estar a ensinar o corredor, a hierarquia de espaço ou a proporção sem estarmos a falar de matéria e a matéria é um acto de consumo contínuo. É como estarmos ligados à corrente. Para andarmos de carro precisamos de ter combustível, eléctrico ou fóssil, e para podermos andar a pé todos os dias temos de tomar um pequeno-alomoço, um almoço e um jantar. Ou, pelo menos, tentar fazer algumas refeições. Nós somos os consumidores. O arquitecto é um construtor. Um construtor implica consumo e esse consumo requere ecossistemas e, com certeza, a eficácia da arquitectura. Isso hoje em dia não pode ser feito de outra maneira. Esse awareness, esse despertar, essa atenção tem de estar desde o primeiro momento, em cima da mesa, e o aluno se não começar a desenvolver essa aptidão na escola nunca mais vai começar.
SN - Há pouco perguntava-lhe porque é que se fala tão pouco sobre esse tema na arquitectura e porque é que existem tão poucos arquitectos a pensar em soluções construtivas sustentáveis. O arquitecto dizia-me que também tem a ver com os custos porque, neste momento, fazer arquitectura sustentável é mais dispendioso.
Como é que podemos fazer com que as pessoas percebam que ainda que seja mais cara estamos, na realidade, a investir no nosso futuro?
CR - Eu aí podia quase citar o Ângelo de Sousa: “Uma pessoa explica uma vez, explica duas, se à terceira a pessoa não entende não vale a pena”. (risos)
SN - (risos)
CR - O Ângelo diz isto muitas vezes e eu acho graça. O que quero dizer é que nós temos de entender e nós temos de o dizer. É o dever do arquitecto dizê-lo. É o dever do arquitecto propô-lo. É o dever do arquitecto reforçar o dizer e reforçar o propor e depois cabe a cada um poder aceitar e entender isto ou não. Penso que quem não entender vai passar um pior bocado; quem entender vai-lhe custar mais no início, mas vai viver melhor. E depois isto vai andando no tempo até chegar ao ponto em que vamos ter todos de entender porque não há outra volta. Fazer uma casa bem feita – não no sentido da construção porque no sentido da construção já atingimos o sublime – o custo de fazer uma casa saudável é um custo que se calhar acresce mais 20 ou 25% do valor original. Ainda é muito, mas é um custo que depois também tem a ver com outras questões como o facto de a casa não ter humidade.
SN - Certo.
CR - Não ter grande necessidade de aquecê-la, não precisar de grande luz artificial, reduzir os consumos, não precisar de arrefecê-la – que é um tema que eu acho absolutamente importante –, pois custa mais dinheiro arrefecer do que aquecer. Não precisar de arrefecê-la num país que tem tendência a aquecer é melhor, é um grande salto. Todo este tema é uma escolha, mas o dever do arquitecto é alertar para essa escolha e o cliente aceita o desafio ou não aceita. Agora dou o exemplo ao contrário, partindo de outro prisma. Vamos supor que um cliente diz: “Eu quero uma casa de 300 m2, vamos construir com o valor x e quero ter y e z”. Depois alguém lhe explica: “Mas olhe que uma casa de 300 m2 para ser sustentável custa x + 20 ou 30%”. A reacção do cliente é: “Isso é uma desgraça!”. Depois eu posso explicar-lhe: “Agora imagine que em vez de 300 m2, vamos arranjar-lhe uma solução em que ela terá tanta qualidade ou mais com 220 ou 210 m2. Vamos tirar-lhe 25 ou 30% e com esse dinheiro que é o mesmo – porque eu reduzi a área de construção – fica com x valor para gastar. Com esse dinheiro vai viver melhor”. Penso que isto pode ser um caminho. Ou seja, pode-se reduzir um pouco em determinadas áreas da casa, em determinadas necessidades que temos como garantidas porque nos habituamos ao excesso de conforto num certo sentido. Eu estou a dizer isto e vivo num apartamento de 100 m2, mas habituamo-nos ao excesso de conforto comparado com as gerações anteriores. Não estou só a falar de Portugal. Estou a falar de Portugal e da Europa. Se virmos um documentário da Europa dos anos 1950s, a Europa estava arrasada. Não foi sequer há um século este hábito de conforto que é um hábito recentemente conquistado. Com esta solução que eu acabei de mencionar a casa terá o mesmo conforto, mas vamos reduzir alguns aspectos que se calhar são secundários como corredores, caixas de escadas e por aí fora. Essa redução tem um impacto muito grande porque esse custo permite-nos melhorar a qualidade da casa (do ponto de vista da sua qualidade saudável e não propriamente da execução da matéria), mas também nos permite dar um salto de natureza tipológica. Portanto melhora-se em várias vertentes porque há melhorias do ponto de vista da eficácia, mas também se melhora do ponto de vista da descoberta de outros espaços e de outras dimensões. Isso interessa-me! Eu penso que isto uma pessoa percebe. O cliente gasta o mesmo, a casa vai ser ligeiramente mais pequena, mas vai viver melhor. Isto pode ser uma coisa interessante.
SN - Mais uma vez a busca sempre pela melhor solução, não tomando a via mais fácil, não é? Digo isto porque há pouco falava sobre a necessidade de complexidade.
CR - Sim, Sara. E eu acho que essa é, precisamente, a questão. Esta questão existe quase desde os anos 1970s. Quando se começou a falar da Teoria do Caos – esta teoria tem a ver com a medição, e a medição levou-nos para uma coisa que era difícil que tinha a ver com a quantificação. Depois a partir de uma certa altura eu penso que o tema da quantificação já não era um tema. Ou seja já não estamos a trabalhar em pressupostos de quantidade. Estamos a trabalhar cada vez mais em pressupostos de qualidade e este paradigma está a mudar. O paradigma dos anos 1970s tem vindo a alterar-se até hoje. Penso que cada vez mais o paradigma não é quantas obras é que o Camilo Rebelo vai fazer ao longo da sua vida, mas a qualidade das obras que o Camilo Rebelo vai fazer na vida útil como arquitecto, que espero que seja longa. Esse é que é o tema. Para que é que me interessa de repente estar a construir tudo e mais alguma coisa e em grandes quantidades quando eu sei que as obras, num certo sentido, estão desprovidas de determinadas qualidades? Confesso que eu pessoalmente não tenho assim tanto interesse. Não me interessa ter cem obras más. Prefiro ter 20 que são excelentes. Este é um pensamento de um arquitecto, mas penso que este é o pensamento que todos nós deveríamos ter na sociedade. Prefiro ter uma casa que se calhar é um pouco mais pequena, mas que é uma casa que me dá muitas mais garantias de qualidade.
SN - Qualidade de vida, não é?
CR - Exactamente.
SN - Arquitecto Camilo, muito obrigada pela partilha das histórias sobre o Museu do Côa, sobre a sua preocupação e sustentabilidade. Obrigada também por nos fazer pensar que a natureza, as novas soluções de habitar e a nossa qualidade de vida têm de estar na linha da frente quando pensamos arquitectura. Muito obrigada!
CR - Eu é que agradeço. Muito obrigado!
Nota do editor: A transcrição da entrevista foi disponibilizada por Sara Nunes e segue o antigo acordo ortográfico de Portugal.